À inspiração de Fernando Sabino e Alexandre Raposo
Aurélia é nossa faxineira há quatro anos. Uma boa profissional, pontual, inteligente e bem articulada. Nossa única reclamação é sua tendência para a decoração — ao final de cada dia de faxina, nossos objetos, enfeites e até móveis estão numa, digamos, nova "proposta estética de espaço".
Todas as terças, Aurélia vem trabalhar e sempre me vê em casa, o dia todo, em frente deste computador e rodeado de livros por todos os lados. Esta semana ela não se conteve e disparou:
— Afinal o senhor trabalha em quê?
Pensei muito bem na resposta, sentindo que esta pergunta, se mal respondida, me definiria como um desocupado que vive às custas de sua mulher. Esta sim, ela vê sair para o trabalho todas as manhãs e nunca a vê voltar. "Mulher trabalhadora a sua, hein, doutor!" — comenta ela, sempre com um risinho acusador nos lábios.
Diante desse risco, respirei fundo e respondi com uma voz empostada, valorizando o mais que eu podia minha atividade profissional:
— Sou Designer Editorial.
— O senhor é o quê? — perguntou como se tivesse acabado de ouvir um palavrão absurdo.
Pensei comigo mesmo: "Ela está achando que eu acabei de inventar esta profissão para justificar minha vagabundagem...". Rapidamente lhe dei outra alternativa:
— Sou um capista, Aurélia!
— Capista?? — os olhos arregalados dela mostravam que esta palavra também parecia inventada.
Vamos então tentar algo mais simples:
— Eu desenho capas de livros. Sou um desenhista.
— Aaaaaah, sei, sei!
Ufa! Uma reação mais positiva, estou chegando lá...
— Então esses livros todos ali na prateleira... o senhor que desenhou?
Todo orgulhoso, percebendo que minha mensagem fora devidamente entendida, fui direto para a estante e peguei uma de minhas capas favoritas para mostrar. Modéstia a parte, era uma bela capa: clean, fundo azul petróleo, toda tipográfica, sem imagens, apenas explorando visualmente a composição das letras do titulo do livro, de maneira que transmitisse um diferencial à publicação. O resultado acabou unindo harmonia estética e apelo comercial.
— Veja isso, Aurélia! – exclamei, entregando o livro com o peito inchado de orgulho.
Ela pegou o livro e começou a olhá-lo com atenção. Virou, examinou a quarta capa, depois olhou atentamente a lombada. Por fim, virou de frente novamente e ficou quase um minuto inteiro com o olhar fixo na capa. Acabando sua análise criteriosa, me encarou bem séria e arrematou:
— Então o senhor é desenhista, é? O senhor está é me enganando. Não estou vendo nenhum desenho neste livro, doutor, só tem estas letras soltas aqui...
***
Não ria. Não ria de Aurélia. Posso atestar que muitos profissionais do mercado editorial também têm dificuldade em compreender o real papel de um designer editorial. Muitos ainda têm a imagem enraizada do designer como um "artista" que trabalha movido por intuição e inspiração. Um sujeito totalmente à parte da estratégia comercial da editora. Não os culpo. Afinal, muitos designers fazem questão de alimentar esta imagem que lhes dá um certo status e valorização financeira, que incham ainda mais seus egos imensos.
Se reconhecermos a capa como uma importante peça de comunicação na comercialização do livro – talvez a mais importante – fica mais fácil compreender o Designer Capista como um profissional da área de Comunicação e não como um profissional da área de Artes. Fica também mais claro que a capa não é uma obra de arte nem o designer é um artista. O capista é um profissional que precisa conhecer a fundo técnicas de comunicação visual, semiótica etc. Ou seja, sua função nada tem a ver com "criar uma capa linda e bem chamativa". Para mim, a principal função de um designer é "traduzir visualmente as intenções comerciais da editora em relação ao livro e a seu público leitor". Será que vocês já tinham refletido sobre tudo isso?
Como podem ver, talvez nossa Aurélia não esteja sozinha...
O Capista
http://blog.capista.com.br
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